Lançada em 1934, a clássica tira em quadrinhos
Terry e os Piratas do norteamericano Milton Caniff era ambientada nos mares da China e apresentavam as aventuras do pré-adolescente Terry Lee ao lado do seu tutor, o aventureiro inglês Pat Ryan, e seu criado chinês Connie, contra os piratas asiáticos. Nunca fui particularmente grande conhecedor destas histórias, mas além de admirador do desenho sensacional, sei que a tira influenciou, décadas depois, a criação de um dos personagens favoritos da minha geração, Jonny Quest. Presentes em todos os campos da ficção literária e artes visuais, os piratas foram os responsáveis diretos pela origem de um marco não só dos quadrinhos mas da comunicação visual neste segmento (o primeiro herói a ter um uniforme e um símbolo): o
Fantasma, criado em 1936 por Lee Falk e Ray Moore.
Daí o título curioso deste artigo – a se desdobrar em breve – que aborda aspectos da pirataria chinesa. Para isso, peço que relevem, apenas por estes textos, a importante questão dos direitos autorais. Que atire a primeira pedra quem nunca usou software ou fontes que desrespeitavam (especialmente em termos de remuneração) os autores originais. O objetivo destas mal digitadas linhas – direto de Xangai, na China, onde pirataria é coisa séria (no sentido de “intensidade” não de “seriedade”) – não é moralizar ou desmoralizar coisa alguma, mas sim contar umas historinhas que, espero, promovam alguma reflexão quanto a responsabilidade dos designers.
Vê-se basicamente dois tipos de pirataria na China, e vou chamá-los de Cópia e Plágio. Por Plágio me refiro a utilização da criação/propriedade intelectual de terceiros de maneira… hmm… deturpada, e será tema do próximo artigo. Já a Cópia se refere a produção não autorizada de mercadorias cujos direitos autorais pertencem a terceiros. Estas possuem diversos níveis de acabamento, que vão dos excepcionalmente fiéis aos mais toscos. Itens extremamente bem acabados – como camisas Hugo Boss e alguns calçados Nike – sugerem uma superfaturação nas cotas de manufatura das fábricas chinesas onde estes produtos são atualmente produzidos, já prevendo esta finalidade de desvio. Mas é nas coisas com acabamento (de produção ou de design) sofrível, que surgem outras questões – e momentos impagáveis. Foi justamente neste formato que primeiro tomei contato com a pirataria chinesa logo na minha segunda semana aqui. O primeiro bucaneiro a gente nunca esquece.
Aproximadamente um mês antes do filme de ação “Serpentes a bordo” / “
Snakes on a plane” chegar as telas brasileiras, já era possível comprar seu dvd dos ambulantes e locadoras de Xangai pelo equivalente a R$1,75. “Locadoras” na verdade é um eufemismo cunhado pelos brasileiros da área, já que não é necessário ter ficha de sócio ou mesmo devolver o filme que você leva para casa. A capa, luxuosamente impressa com relevo seco no título, está em alemão (Wir wünschen ihnen einen angeehmen flug Snakes on a plane), a lombada em chinês e o verso, com a descrição do filme e os indefectíveis elogios de jornais e revistas, em inglês: “
Big oil means big money. Very big money. And that fact unleashes corruption that stretches from Houston to Washington to the Mideast. George Clooney (Academy Award and Golden Globe Winner as Best Supporting Actor), Matt Damon and Jeffrey Wright lead a stellar cast in a thriller written and directed by Traffic Academy Award Winner Stephen Gaghan” e assim prossegue. Apesar da cara raivosa do protagonista Samuel Jackson estampada, o texto é sobre outro filme,
Syriana, com Clooney, Damon etc. E apesar do disco ter a mesma imagem (alemã) da capa em perfeita policromia, foi filmado direto do cinema (as silhuetas passando na frente da imagem se encarregam de deixar isto bem claro) e legendado com criativa liberdade quanto ao enredo por alguém com um nível lá não miuito avançado de inglês. E quando, nos créditos finais, se cruza com uma referência a um ski/snowboard instructor (em um filme que se passa dentro de um avião e que em nenhum momento mostra uma cena de neve) percebe-se que nem isso é verdadeiro!
Em seu livro
China Inc., o jornalista norte-americano Ted C. Fishman lembra que “os regimes severos de propriedade intelectual são invenção relativamente recente e existem (…) no interesse de proporcionar um ambiente que crie mais opções para os consumidores, e nos fim das contas para o crescimento econômico.” É o caso aqui, onde a indústria da falsificação cria milhões de empregos em produção e comercialização, e que proporcionam ao povo chinês bens a um custo mais baixo – e não estou me referindo aí a carteiras Louis Vuitton, mas a livros escolares, roupas e mesmo alguns equipamentos médicos, além da, como Fishman cita, “(…) tecnologia estrangeira de que a China muito precisa para atingir seus objetivos industriais.”
Que é justamente onde podemos encontrar um paralelo verde amarelo – inclusive com a nossa área. Nas duas últimas décadas o desenvolvimento do mercado (e mesmo em termos de linguagem) do design brasileiro só foi/é possível graças a existência dos softwares piratas, que permitem que estudantes e profissionais exerçam suas atividades de estudo, pesquisa e trabalho a um custo real. Aos preços oficiais impostos pelas companhias, isto seria impossível. As companhias de software apresentam números assustadores quando falam das perdas, mas pela lógica chino-brazuca que Fishman apresenta, “quem poderia ser prejudicado se o software é pirateado por pessoas que de outra forma nunca o comprariam?”
Peraí, eu prometi que não íamos falar disso de maneira tão crítica, não? Fechando com uma amenidade: uma semana após a estréia em Londres do novo James Bond,
Casino Royale, o dvd com o filme já podia ser encontrado aqui. Mas esse eu não cheguei a ver por que as donas da minha “locadora” não me deixaram levar – aparentemente, a qualidade era muito ruim até para os padrões locais: pelo que entendi, tinha sido filmado do cinema com um celular Nokia. Não duvido nada.